segunda-feira, dezembro 27, 2010

Respeito Não Merecido

Extraído do livro "Deus - Um Delírio" de Richard Dawkins:

RESPEITO NÃO MERECIDO

Meu título, Deus, um delírio, não se refere ao Deus de Einstein e ao de outros cientistas esclarecidos da seção anterior. É por isso que preciso tirar a religião einsteiniana da frente antes de qualquer coisa: ela tem uma capacidade comprovada de causar confusão. No restante deste livro falo só dos deuses sobrenaturais, entre os quais o mais familiar à maioria de meus leitores será Javé, o Deus do Antigo Testamento. Chegarei a ele num instante. Mas, antes de concluir este capítulo preliminar, preciso tratar de mais uma questão que poderia comprometer o livro inteiro. Desta vez é uma questão de etiqueta. É possível que leitores religiosos fiquem ofendidos com o que tenho a dizer, e encontrem nestas páginas um respeito insuficiente por suas crenças específicas (se não às crenças cultivadas por outras pessoas).

Seria uma pena que essa ofensa os impedisse de continuar a ler, por isso quero esclarecer o problema aqui, logo de saída. Uma pressuposição disseminada, aceita por quase todos em nossa sociedade — incluindo os não religiosos —, é que a fé é especialmente vulnerável às ofensas e que deve ser protegida por uma parede de respeito extremamente espessa, um tipo de respeito diferente daquele que os seres

humanos devem ter uns com os outros. Douglas Adams explicou tão bem,num discurso de improviso que fez em Cambridge pouco antes de morrer, que nunca me canso de divulgar suas palavras:

A religião [...] tem determinadas idéias em seu cerne que denominamos sagradas,

santas, algo assim. O que isso significa é: "Essa é uma idéia ou uma noção sobre a qual

você não, pode falar mal; simplesmente não pode. Por que não? Porque não, e

pronto!". Se alguém vota em um partido com o qual você não concorda, você pode

discutir sobre isso quanto quiser; todo mundo terá um argumento, mas ninguém vai

se sentir ofendido. Se alguém acha que os impostos devem subir ou baixar, você pode

ter uma discussão sobre isso. Mas, se alguém disser: "Não posso apertar o interruptor

da luz no sábado", você diz: "Eu respeito isso".

Como é possível que seja perfeitamente legítimo apoiar o Partido Trabalhista ou o Partido Conservador, republicanos ou democratas, um ou outro modelo econômico, o Macintosh e não o Windows — mas não ter uma opinião sobre como o universo começou, sobre quem criou o universo [...] não, isso é sagrado? [...] Estamos

acostumados a não questionar idéias religiosas, mas é muito interessante como

Richard causa furor quando o faz! Todo mundo fica absolutamente louco, porque não

se pode falar dessas coisas. Mas, quando se analisa racionalmente, não há nenhuma

razão para que essas idéias não estejam tão sujeitas a debate quanto quaisquer

outras, exceto o fato de que, de alguma forma, concordamos entre nós que elas não

devem estar.

Veja um exemplo específico do respeito exagerado de nossa sociedade pela religião, um exemplo realmente importante. De longe o meio mais fácilde obter permissão para ser dispensado do serviço militar em tempos de guerra é por motivos religiosos. Você pode ser um filósofo brilhante da moralidade, com uma tese de doutorado premiada sobre os males da guerra, e mesmo assim pode ter dificuldade diante dos avaliadores para ser dispensado por motivos de consciência. Mas, se você disser que seus pais são quakers, consegue fácil, mesmo que seja completamente iletrado e desarticulado quanto à teoria do pacifismo ou até quanto ao próprio

quakerismo.

No outro extremo do espectro do pacifismo, temos uma relutância pusilânime em usar nomes religiosos para facções de guerra. Na Irlanda do Norte, católicos e protestantes ganham os nomes eufemistas de "nacionalistas" e "legalistas", respectivamente. A própria palavra "religiões" é censurada e transformada em "comunidades", como em "guerra intercomunidades". O Iraque, em conseqüência da invasão anglo-americana de 2003, entrou numa guerra civil sectarista entre muçulmanos sunitas e xiitas. É claramente um conflito religioso — mas no The Independent do dia 20 de maio de 2006 tanto a manchete de primeira página quanto a notícia o descreviam como "limpeza étnica". "Étnica", nesse contexto, é mais um eufemismo. O que estamos vendo no Iraque é uma limpeza religiosa. Também é possível argumentar que o uso original do termo "limpeza étnica" na ex-lugoslávia tenha sido um eufemismo para limpeza religiosa, envolvendo sérvios ortodoxos, croatas católicos e bósnios muçulmanos. Já chamei a atenção para o privilégio dado à religião em discussões públicas sobre ética na imprensa e no governo. Sempre que surge uma controvérsia sobre a moral sexual ou reprodutiva, pode-se apostar que haverá líderes religiosos dos mais diversos grupos de fiéis proeminentemente representados em comissões influentes, ou em mesas-redondas no rádio ou na televisão. Não estou sugerindo que deveríamos nos dar ao trabalho de censurar as opiniões dessa gente. Mas por que nossa sociedade corre a ouvi-los, como se fossem especialistas comparáveis a, digamos, um filósofo da moralidade, um advogado de família ou um médico?

Veja outro exemplo estranho do privilégio dado à religião. No dia 21 de fevereiro de 2006, a Suprema Corte dos Estados Unidos determinou, de acordo com a Constituição, que uma igreja do Novo México deveria ser isentada de cumprir uma lei, a que todo mundo tem de obedecer, que proíbe o uso de drogas alucinógenas.8 Os integrantes do Centro Espírita Beneficente União do Vegetal acreditam que só conseguem compreender Deus tomando chá de ayahuasca, que contém a droga alucinógena ilegal dimetiltriptamina. Perceba que basta que eles acreditem que a droga aumenta sua compreensão. Eles não têm de fornecer provas. Por outro lado, há muitas provas de que a maconha alivia a náusea e o desconforto de doentes de câncer submetidos a quimioterapia. Mesmo assim, novamente de acordo com a Constituição, a Suprema Corte determinou, em 2005, que todos os pacientes que usarem a maconha com fins medicinais estarão sujeitos a indiciamento federal (até na minoria dos estados em que esse uso especializado foi legalizado). A religião é, como sempre, o trunfo. Imagine se os integrantes de uma sociedade de apreciadores de arte alegassem à Justiça que "acreditam" precisar de um alucinógeno para aumentar sua compreensão dos quadros impressionistas ou surrealistas. Mas, quando uma igreja alega uma necessidade semelhante, recebe o apoio da mais alta corte do país. É tal o poder da religião como talismã.

Há dezoito anos, fui um dos 36 escritores e artistas convocados pela revista New Statesman para escrever um manifesto de apoio ao respeitado autor Salman Rushdie,9 então condenado à morte por ter escrito um romance. Irritado com as manifestações de "solidariedade" de líderes cristãos e até de alguns formadores de opinião laicos à "mágoa" e à "ofensa" dos muçulmanos, tracei o seguinte paralelo:

Se os defensores do apartheid fossem espertos, eles teriam alegado — com

sinceridade, pelo que sei — que permitir a mistura de raças era contra sua religião.

Uma boa parte da oposição teria respeitosamente se afastado. E não adianta afirmar

que se trata de um paralelo injusto porque o apartheid não tem justificativa racional.

O grande ponto da fé religiosa, sua força e sua glória, é que ela não depende de

justificativas racionais. Recai sobre o resto de nós a expectativa de que justifiquemos

nossos preconceitos. Mas peça a uma pessoa religiosa que justifique sua fé e você

infringirá a "liberdade de religião".

Mal sabia eu que uma coisa muito parecida aconteceria no século XXI. O Los Angeles Times (10 de abril de 2006) afirmou que vários grupos cristãos de campi dos Estados Unidos estavam processando suas universidades por adotar normas antidiscriminação, como a proibição de agredir homossexuais. Num exemplo típico, em 2004 James Nixon, um menino de doze anos de Ohio, ganhou na Justiça o direito de usar uma camiseta na escola com as palavras "Homossexualidade é pecado, islã é mentira, aborto é assassinato. Certas questões são preto no branco!".10 A escola disse a ele que não usasse a camiseta — e os pais do menino processaram a escola. Os pais talvez tivessem um caso aceitável se houvessem se baseado na garantia de liberdade de expressão da Primeira Emenda. Mas eles não tinham. Em vez disso, os advogados de Nixon argumentaram com o direito constitucional à liberdade de religião. A ação vitoriosa recebeu o apoio do Alliance Defense Fund do Arizona, cuja missão é "pressionar por batalhas legais pela liberdade de religião".

O reverendo Rick Scarborough, apoiando a onda de ações cristãs semelhantes para estabelecer a religião como justificativa legal para a discriminação de homossexuais e outros grupos, declarou-a como a luta pelos direitos civis do século XXI: "Os cristãos vão ter de se posicionar pelo direito de ser cristãos".11 Se essas pessoas se posicionassem em nome da liberdade de expressão, haveria relutância em apoiá-las. Mas não é disso que se trata. O "direito de ser cristão" parece, nesse caso, significar o "direito de meter o bedelho na vida privada dos outros". O caso jurídico a favor da discriminação de homossexuais está sendo montado como uma reação contra uma suposta discriminação religiosa! E a lei parece respeitar a atitude. Não dá para se safar dizendo: "Se você tentar me impedir de insultar homossexuais, estará violando minha liberdade de preconceito". Mas dá para se safar dizendo: "Isso viola minha liberdade de religião". Qual é a diferença, pensando bem? A religião, mais uma vez, supera tudo.

Encerro o capítulo com um estudo de caso especial, que escancara de forma iluminadora o respeito exagerado da sociedade pela religião, acima de todo respeito humano comum. O caso pegou fogo em fevereiro de 2006 — um episódio ridículo, que oscilou loucamente entre os extremos da comédia e da tragédia. Em setembro do ano anterior, o jornal dinamarquês Jyllands - Posten publicou doze caricaturas do profeta Maomé. Ao longo dos três meses seguintes, a indignação foi sendo cuidadosa e sistematicamente alimentada no mundo islâmico por um pequeno grupo de muçulmanos que moram na Dinamarca, liderado por dois imãs que haviam recebido guarida ali. No fim de 2005, esses exilados malévolos viajaram da Dinamarca para o Egito caregando consigo um dossiê, que foi copiado e circulou em todo o mundo islâmico, incluindo, decisivamente, a Indonésia. O dossiê continha falsidades sobre supostos maus-tratos sofridos por muçulmanos na Dinamarca, e a mentira tendenciosa de que o Jyllands-Posten era um jornal estatal. Também continha as doze caricaturas, às quais os imãs haviam acrescentado, de forma crucial, mais três, cuja origem era misteriosa, mas que certamente não tinha nenhuma ligação com a Dinamarca. Ao contrário das doze originais, essas três novas caricaturas eram genuinamente ofensivas — ou teriam sido se tivessem, como alegaram os zelosos propagandistas, retratado Maomé. Uma das três novas imagens, particularmente negativa, não era nem um desenho, e sim a reprodução por fax de uma foto de um homem barbado usando um nariz de porco falso, preso por um elástico. Depois foi revelado que era uma foto da Associated Press de um francês que participava de um concurso de imitação de porcos numa feira rural da França.13 A foto não tinha a menor conexão com o profeta Maomé, nem com o islã, nem com a Dinamarca. Mas os ativistas muçulmanos, em sua missão agitadora ao Cairo, insinuaram as três conexões... com resultados previsíveis.

A "mágoa" e a "ofensa" cuidadosamente cultivadas explodiram cinco meses depois da publicação original das doze caricaturas. Manifestantes no Paquistão e na Indonésia queimaram bandeiras dinamarquesas (onde será que eles foram arrumá-las?) e exigências histéricas foram feitas para que o governo da Dinamarca pedisse desculpas. (Desculpas pelo quê? Eles não desenharam as caricaturas, nem as publicaram. Os dinamarqueses só vivem num país com liberdade de imprensa, uma coisa que muitos países islâmicos podem ter dificuldade de entender.) Jornais na Noruega, na Alemanha, na França e até nos Estados Unidos (mas, notavelmente, não na Grã-Bretanha) republicaram as caricaturas num gesto de solidariedade ao Jyllands-Posten, o que pôs mais lenha na fogueira. Embaixadas e consulados foram depredados, produtos dinamarqueses foram boicotados, cidadãos dinamarqueses — e até ocidentais em geral — foram fisicamente ameaçados; igrejas católicas no Paquistão, sem nenhum tipo de ligação com dinamarqueses ou europeus, foram incendiadas. Nove pessoas morreram quando manifestantes líbios atacaram e incendiaram o consulado italiano em Benghazi. Como escreveu Germaine Greer, o que essa gente gosta mesmo, e faz melhor, é de pandemônio.

Uma recompensa de 1 milhão de dólares pela cabeça do "cartunista dinamarquês" foi estabelecida por um imã paquistanês — que aparentemente não sabia que eram doze cartunistas dinamarqueses diferentes, e que decerto não sabia que as três imagens mais ofensivas jamais tinham sido publicadas na Dinamarca (e, aliás, de onde ia vir aquele milhão?). Na Nigéria, manifestantes muçulmanos que protestavam contra as caricaturas dinamarquesas queimaram várias igrejas católicas, e usaram machados para atacar e matar cristãos (nigerianos negros) nas ruas. Um cristão foi enfiado dentro de um pneu, encharcado de gasolina e incendiado. Na Grã-Bretanha, manifestantes foram fotografados segurando faixas com os dizeres "Matem quem insulta o islã", "Assassinem quem ridiculariza o islã", "Europa, você vai pagar: a demolição está a caminho" e "Decapitem aqueles que insultam o islã". Felizmente, nossos líderes políticos estavam a postos para nos lembrar que o islã é uma religião de paz e compaixão.

Nos desdobramentos que se seguiram a isso tudo, o jornalista Andrew Mueller entrevistou o principal muçulmano "moderado" da Grã-Bretanha, sir Iqbal Sacranie.15 Ele pode ser moderado pelos padrões islâmicos atuais, mas, segundo relato de Andrew Mueller, ele ainda faz jus à declaração que deu quando Salman Rushdie foi condenado à morte por ter escrito um romance: "Talvez a morte seja fácil demais para ele" — uma declaração que estabelece um contraste ignominioso com seu corajoso anteces¬sor, o muçulmano mais influente da Grã-Bretanha, o falecido dr. Zaki Badawi, que ofereceu refúgio em sua própria casa a Salman Rushdie. Sacranie disse a Mueller quanto estava preocupado com as caricaturas dinamarquesas. Mueller também estava preocupado, mas por um motivo diferente: "Temo que a reação ridícula, desproporcional, a alguns desenhos sem graça de um jornal escandinavo obscuro confirme que [...] o islã e o Ocidente são fundamentalmente irreconciliáveis". Sacranie, por sua vez, elogiou os jornais britânicos por não terem reproduzido as caricaturas, e Mueller respondeu ecoando as suspeitas da maior parte do país, de que "a contenção dos jornais britânicos deveu-se menos à sensibilidade em relação ao descontentamento muçulmano e mais ao desejo de não ter suas janelas depredadas". Sacranie explicou que "a pessoa do Profeta, que a paz esteja com ele, é profundamente reverenciada no mundo muçulmano, com um amor e uma afeição que palavras não conseguem explicar. Vai além de seus pais, dos entes queridos, dos filhos. Isso faz parte da fé. Também há um ensinamento islâmico de que não se retrata o Profeta". Isso pressupõe, como observou Mueller, que os valores do islã têm um trunfo sobre todos os outros — coisa que todo seguidor do islã pressupõe, do mesmo modo como todo seguidor de toda religião acredita que o seu é o único caminho, a verdade e a luz. Se as pessoas querem amar um religioso do século VII mais que a suas próprias famílias, problema delas, mas ninguém é obrigado a levar isso a sério [...]

Exceto que, se você não levar isso a sério e não lhe destinar o respeito adequado, sofrerá ameaças físicas, numa escala a que nenhuma outra religião aspirou desde a Idade Média. Não dá para não se perguntar por que esse tipo de violência é necessário, considerando que, como observa Mueller: "Se vocês, palhaços, tiverem alguma razão, os cartunistas vão mesmo para o inferno — não basta? Enquanto isso, se vocês quiserem ficar mesmo abalados com afrontas a muçulmanos, leiam os relatórios da Anistia Internacional sobre a Síria e a Arábia Saudita". Muita gente já ressaltou o contraste entre a "mágoa" histérica professada pelos muçulmanos e a prontidão com que a imprensa árabe publica charges antijudaicas estereotipadas. Numa manifestação no Paquistão contra as caricaturas dinamarquesas, uma mulher de burca negra foi fotografada carregando um cartaz que dizia "Deus abençoe Hitler".

Em resposta a todo esse pandemônio, os jornais condenaram a violência e fizeram um pouco de barulho em defesa da liberdade de expressão. Mas ao mesmo tempo manifestaram "respeito" e "solidariedade" pela "ofensa" e pela "mágoa" profundas "sofridas" pelos muçulmanos. A "mágoa" e o "sofrimento" consistiam, lembre-se, não na imposição de qualquer violência ou dor real a uma pessoa: nada mais que alguns traços de tinta impressa num jornal sobre o qual ninguém jamais teria ouvido falar fora da Dinamarca se não fosse por uma campanha deliberada de incitação à desordem.

Não sou a favor de ofender nem magoar ninguém sem motivo. Mas fico intrigado e espantado com o privilégio desproporcional da religião em nossas sociedades ditas laicas. Todos os políticos têm de se acostumar às caricaturas desrespeitosas de seu rosto, e ninguém faz atos públicos em sua defesa. O que a religião tem de tão especial para que asseguremos a ela um respeito tão privilegiado e singular? Como disse H. L. Mencken: "Devemos respeitar a religião do outro, mas só no mesmo sentido e na mesma proporção com que respeitamos sua teoria de que sua mulher é linda e que seus filhos são inteligentes".

Nenhum comentário:

Postar um comentário